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ULTIMA HOMINIS FELICITAS EST IN CONTEMPLATIONE VERITATIS

Pilulas de sabedoria



O escrito que se segue é uma condensação efetuada por mim de trecho do livro Deuses, Túmulos e Sábios de C. W. Ceram (no caso, retirados da 8ª edição brasileira, de 1959 [p. 42-46]), da Editora Melhoramentos (o livro ainda é editado e pode ser encontrado nas livrarias). Trechos em negrito ou grifados são meus.


Heinrich Schliemann

A maioria dos sábios contemporâneos designava como possível sítio onde Troia poderia ter ficado – se ela teria existido algum dia – a aldeola de Bunarbashi, a qual se distinguia apenas pelo fato de ostentar (o que ainda hoje acontece) em cima de cada uma de suas casas até uma dúzia de ninhos de cegonha. Havia naquele lugar duas fontes que levavam os arqueólogos arrojados à opinião de que bem poderia ter sido ali a velha Troia.

E alcançaram as duas fontes de belas águas borbulhantes,
De onde parte, de dupla nascente, o Escamandro vertiginoso.
Uma corre sempre quente, e do fundo dela
Sobem nuvens de fumo como de uma fornalha;
Mas a outra, mesmo no verão corre fria como granizo,
Ou como a neve de inverno e como gélidos blocos de gelo.

Ilíada, XXII, 147-152 [1]

Esse primeiro olhar, entretanto já lhe mostrou que aquele lugar, a uma distância de três horas do litoral, não podia ter sido o sítio de Troia, visto que os herois de Homero eram capazes de correr, várias vezes por dia, dos seus navios até o castelo. E naquela colina poderia ter-se erguido o castelo de Príamo, com sessenta e duas dependências, muralhas ciclópicas e o caminho da porta pela qual o cavalo de madeira do astucioso Ulisses teria sido levado para dentro da cidade?

Schliemann inspecionou as fontes e abanou a cabeça. Num espaço de 500 metros não contou duas (como declarou Homero), mas 34 [fontes]. Ele, que tomava Homero ao pé da letra, como os antigos teólogos da Bíblia, puxou do seu termômetro de bolso, examinou uma por uma das 34 fontes, e encontrou em todas a mesma temperatura de 17,5 °C.

E foi mais longe ainda. Abriu a Ilíada e leu os versos do medonho combate de Aquiles e Heitor. Leu como Heitor fugiu diante do “valente corredor”, e assim “três vezes deram a volta à fortaleza de Príamo”, “e todos os deuses olhavam”. Schliemann percorreu o caminho descrito. Encontrou um declive, tão escarpado que se viu forçado a descê-lo de quatro, em marcha à ré. Isso confirmou-o na convicção de que Homero, cujas descrições de terreno ele aceitava como topografia militar, nunca podia ter pensado em fazer descer seus herois três vezes aquele declive “em apressada corrida”.

Havia, porém, sinais em outro sítio. Já se mostravam ao olhar superficialmente examinador entre as ruínas de Nova Ílion, hoje Hissarlik, que significa “palácio”, duas horas e meia ao norte de Bunarbashi, distante apenas uma hora da costa. Mas que dizer aqui das fontes de Homero, razão fundamental da teoria de Bunarbashi? Só uma rápida incerteza acometeu Schliemann quando lhe ocorreu aí justamente o contrário do que lhe ocorrera em Burnabashi, isto é, quando não achou fonte alguma, ao passo que lá encontrara 34. A observação de Calvert ajudou-o: num breve período de tempo haviam desaparecido e reaparecido várias fontes quentes naquele solo vulcânico. E com uma observação de passagem ele liquidou o que até então parecera tão importante aos acadêmicos, e o que lá lhe servira de refutação servia-lhe ali de prova. A perseguição de Heitor por Aquiles já não tinha nada de improvável se tivera lugar ali onde os declives da colina se alargavam suavemente. Eles teriam de percorrer 15 Km para dar volta à cidade três vezes, e isso, segundo experiência própria, não lhe pareceu demais para guerreiros estimulados pelo ardor de um duelo cheio de ódio.

E então, como um possesso, Schliemann pôs mãos à obra. Em 1869 ele havia casado com uma grega, Sofia Engastromenos. Em 1871 cavou durante dois meses e, nos dois anos seguintes, quatro meses e meio por ano. Tinha 100 operários à sua disposição. Trabalhava sem descanso e nada o detinha; nem a febre; nem a falta de boa água; nem as impertinências dos trabalhadores; nem a lentidão das autoridades e a incompreensão dos cientistas do mundo inteiro, que lhe chamavam tolo e coisas piores.

Sofia Schliemann
Sofia Schliemann usando joias “surrupiadas” da escavação

Escavando, encontrou armas e utensílios domésticos, ornamentos e vasos, provas evidentes de que ali existira uma cidade opulenta. Mas achou também alguma coisa mais, e pela primeira vez o nome de Heinrich Schliemann correu o mundo: sobre as ruínas de nova Ílion achou outras ruínas e, por baixo dessas, mais outras. A colina parecia imensa cebola que era preciso desfolhar camada por camada. E cada uma dessas camadas parecia ter sido habitada em tempos diversíssimos. Eram nove cidades, nove visões de um mundo antiquíssimo do qual o mundo nada soubera e suspeitara!

Era um triunfo para Heinrich Schliemann, mas também era o triunfo para Homero. O que até então valera como lenda e mito e fora atribuído à imaginação do poeta estava provado agora que existia.


A vida de Henry Schliemann é ainda muito mais rica: escavou também Micenas e Tirinto. Enganou-se quanto à qual camada correspondia à Troia Homérica – o que só veio a saber ao final da vida. Faltam nessa condensação muitos dos detalhes de suas aventuras comerciais e seu aprendizado constante de novos idiomas. Faleceu em 26 de Dezembro de 1890, e foi enterrado num mausoléu em formato de templo grego antigo, num cemitério de Atenas.

Notas

[1] – Os versos encontram-se assim no livro. Por curiosidade e por querer permitir uma "releitura” dos versos, deixo os mesmos segundo a tradução de Carlos Alberto Nunes:

os mananciais cristalinos passaram, que as duas nascentes
perenemente alimentam do Xanto de vórtices túrbidos:
de uma, água quente deflui, de onde denso vapor se levanta
continuadamente, tal como se fogo vivaz a aquecesse,
enquanto da outra, até mesmo no ardor do verão, sempre escoa
água tão gélida quanto granizo ou cristais de alva neve.

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